Apenas o fim

A triste missão de ser o último a apagar a luz em uma festa adolescente que prometia durar a vida toda

por Matheus Pichonelli
Frances Ha

Não é difícil entender por que Frances Ha, filme Noah Baumbach que estreou em São Paulo na semana passada, arrebatou tantas mentes e corações na última temporada do cinema americano. Frances, personagem de Greta Gerwig, é a cara cuspida, amassada e insone de uma juventude desencontrada em seu próprio tempo. Uma juventude que estica até onde pode os vínculos, vícios e sonhos adolescentes para não se dobrar a uma vida de desencantos, na qual crescer é, mais que uma ordem, um convite a abrir mão dos sonhos – ou a encaixá-los em uma realidade menos generosa.

De Frances, uma dançarina meio profissional, meio amadora, todo mundo tem um pouco. Ou já teve. Ou conhece alguém que tem ou teve. É a menina estranha da ala dos sonhadores. Que, a certa altura da vida, decidiu que o dinheiro importava menos do que a vocação para ser livre, mesmo que ser livre fosse apenas ter em mãos um botão vermelho que permitisse dinamitar tudo em segundos e começar tudo de novo.
Ela já saiu da casa dos pais. Já sobreviveu à cidade grande. Já sobreviveu à faculdade. Já sabe o que é passar aperto para pagar as contas. Já transportou os vínculos afetivos para a rede de amigos, a “família que escolheu para ela”. Já se dedicou, já estudou, já se esforçou, já se cansou – e não chegou aonde queria.

Frances senta com as pernas dobradas, caminha distraída, tropeçando, e, por excesso ou ausência de timidez, diz frases constrangedoras em momentos inoportunos. Não é novata nem veterana. Nem bonita nem feia. Nem santa nem junk. Nem vaidosa nem relapsa. Nem solta nem comprometida. Nem alegre nem triste. Nem velha nem nova. Nem consagrada nem fracassada. Nem só confusa nem só determinada. Está sempre no meio do caminho, e sempre diante de notícias avisando que “não vai ser desta vez”.

À medida que envelhece, as decepções começam a estourar uma a uma em seu rosto machucado de tanto cutucar uma espinha insistente, como uma herança de um período de irresponsabilidades toleradas. Nos jantares com amigos bem-sucedidos (os que optaram por ganhar dinheiro e ter uma vida burocrática, que ela despreza), Frances se esconde, se constrange, se encolhe.

Quando não sabe o que dizer, bebe; quando bebe, se solta; quando se solta, passa a dizer frases desconexas, que brotam do nada e chegam a lugar algum; como consequência, chega em casa e vê o mundo rodopiar ao deitar na cama – como ensinaram certa vez, nessas horas o melhor a fazer é manter a cabeça para cima e os pés apoiados no chão, como um antigo refrão sobre mentes quietas, espinhas eretas e corações tranquilos. Porque é preciso ser assim e assado, e os pés no chão são uma garantia mínima de sobriedade para que o mundo não desmorone. Não tão de repente.

Durante boa parte do filme, ficamos a imaginar quantos anos Frances teria (me permitam não contar). Há momentos em que imaginamos que ela já passou dos 30. Em outros, que anda na primeira metade dos 20. Não é por menos. Nessa transição prorrogada, que para alguns chega a levar uma vida inteira, desenvolvemos comportamentos ambíguos que nos fazem tropeçar pela manhã com hábitos e questionamentos dos mais juvenis (ela adora brincar de “lutinha” no parque e fazer troça com as câmeras do metrô) e dormir com o cansaço de um ancião. Até aí, (quase) nada de novo.

No início dos anos 1990, o maior fenômeno da tevê americana era um seriado que teve a sacada de levar para a tela, durante longos dez anos, o retrato de uma geração desvinculada dos cuidados dos pais, mas que entrava na vida adulta com uma camiseta adolescente, com vínculos profissionais afrouxados (para quatro dos seis personagens) e apartamentos e contas divididas entre amigos para se bancar e poder ir ao cinema, rir e tomar um vinho barato de vez em quando. Por ironia, o deboche hilário de “Friends” se tornou, ao longo das temporadas, um abacaxi para produtores, fãs, personagens e atores presos aos personagens: como manter o espírito (o espírito jovem e despojado do programa-piloto) quando a vida adulta, regrada e menos permissiva, bater à porta?
Conforme eles envelheciam, as brincadeiras, os porres e as escolhas erradas começavam a soar ridículos. Salvo uma piada e outra intercalada por períodos cada vez mais esparsos, o seriado tinha como pano de fundo um grande drama: o momento de fechar as portas de um tempo duro mas festivo, localizado em algum ponto entre a irresponsabilidade juvenil e a parcimônia adulta, para que cada um tocasse a vida por si e se dedicasse, como se esperava deles, ao casamento (os que casaram), aos filhos (os que tiveram), aos empregos (cada vez mais arraigados).

Frances Ha, de certa forma, joga para os tempos atuais essa república do seriado, mas com um tom assumidamente melancólico ao passar para a personagem principal a missão de ser a última a apagar a luz (em tempo: o filme é em preto e branco).

Frances é aquela amiga, ou amigo, que apostou todas as fichas em uma festa que não tinha hora para acabar e acabou. Que viu, um por um, os amigos tomando decisões nas quais nem sempre ela fazia parte e demorou a perceber que este era um caminho natural, e não uma vingança de Deus, dos homens ou da natureza. Que, quando a festa acabou, a luz apagou, o povo sumiu, a noite esfriou, correu para aumentar o som, ainda com o chapéu de festa na cabeça, os dedos indicadores para cima, e implorou, em vão: “fica, gente, vai ter bolo”. Depois, apelou para a chantagem: “Como assim você vai me deixar?”; “Como assim você vai se casar com este idiota?”; “Como assim você não quer passar a velhice ao meu lado jogando milho aos pombos e maldizendo os caretas?”.

Pensando bem, o filme é menos o retrato de um tempo de desapego (e das consequências deste desapego) material do que um filme sobre a amizade, e sobre o processo natural de rompimentos com uma fase que, como uma antiga farra de faculdade, não tem hora para terminar, mas é certo que um dia terá fim.